sábado, marzo 15, 2008

A História de Mascarenhas

Mascarenhas sempre fez o estilo correto. Probo, incorruptível e honesto. Preferia ser chamado pelo sobrenome, já que o primeiro nome era comum demais: José. “Existem Zés de monte neste país, mais um fica no bolo.”
Mas, apesar da postura reativa em relação ao nome – chegou a ter uma briga com os pais por conta da escolha – Mascarenhas era sim, mais um no bolo. Porque levava uma vida comum. Se algo se destacava na personalidade do Mascarenhas, era a honestidade, tão rara nos dias atuais.

Administrador por formação, trabalhava na mesma empresa há 22 anos. Entrara lá recém-saído da faculdade. Foi praticamente o único emprego da sua vida. Começou como auxiliar administrativo, quase com um salário de office boy, mas depois de um tempo começou a galgar degraus mais altos na empresa, sempre apoiado em sua competência.

Poderia ter crescido mais, porém recusara duas ofertas do diretor financeiro, o Almeida: receber um ‘por fora’ de um fornecedor e entrar num ‘esquema’. Rejeitou e correu o risco de perseguição, mas logo o Almeida, que o tinha convidado “para ganhar apenas uns trocados a mais” percebeu que o Mascarenhas não queria confusão. Honesto ele era, sim, mas não pensava em ser o cagüeta da firma. Já estava um pouco cansado, tinha filhos entrando na faculdade para sustentar, e resolveu ficar quieto. Mesmo assim, sentia algum peso na consciência quando se lembrava do fato: chegou a, num rompante, andar em direção à sala do vice-presidente para contar tudo. Mas, no meio do caminho, mudou de idéia e foi pegar um café.

Pois bem. Mascarenhas, ou Masca, como gostavam de chamar alguns amigos à revelia (“Não sou chiclete para ser mascado, porra!”, bradava) não cometia deslizes. Era bom pai, bom marido e bom profissional. Preocupava-se com o bem-estar dos filhos e seus estudos, nunca traíra a mulher e fazia todas as suas vontades. Viu suas promoções serem dadas a puxa-sacos de última hora diversas vezes, mas já havia se acostumado com a idéia. Poderia ser indicado ao Prêmio Nobel da Paz.

Um dia Mascarenhas ia para o trabalho em seu carro mediano – levava uma vida decente e digna, mas sem grandes luxos – quando um tipo parou com uma moto ao seu lado, botou o revólver no seu peito e gritou: “Este relógio é meu agora!” Tremendo mais do que vara verde, Masca entregou o relógio e ainda deu um trocado para o cara, que disparou em meio à fumaça e ao barulho das buzinas, sem que nada do cotidiano caótico da capital paulistana fosse alterado.

Ainda assustado, chegou ao trabalho ofegante, em silêncio. Nem o “bom dia” que a Angélica, a gostosa da secretária do chefe ( a quem homenageara em algumas ‘pajas’), deu, foi respondido. Após quatro cafés e três copos d’agua, Mascarenhas só conseguia pensar numa coisa: “E se eu tivesse morrido?”

Esta pergunta martelou a cabeça do marido de Luciana por dias. Aquele assalto fora mesmo traumático para o Masca. Mal falava com os colegas de trabalho e, em casa, era mais monossilábico do que atendente de repartição pública. A mulher perguntava se estava tudo bem e só ouvia “Sim, só estou cansado.” Só que esta ladainha durou quase um mês. Então, 27 dias depois do roubo, que ele mantivera em segredo, Luciana, num misto de amargura e revolta, disparou: “Você vai ficar mudo para sempre? Nem me comer você vai? Você é um frouxo mesmo, eu bem que devia ter escutado a minha mãe antes de casar com você.” Mascarenhas respirou fundo e engoliu seco. Não quis brigar para que os filhos não escutassem. Filhos que a esta altura estavam sempre de passagem, só pediam dinheiro para as baladas. “Pelos menos são homens, ninguém vai aparecer grávido aqui”, resignava-se Mascarenhas.

Em crise familiar e ainda com a cabeça virada por ter tido um 38 apontado para o seu peito, o gerente mal conseguia dormir. Numa terça-feira, em conseqüência da crescente insônia, levantou para trabalhar com 20 minutos de atraso. Devido ao congestionamento monstruoso, chegou ao emprego às 10h15, mais de uma hora atrasado, o que nunca ocorrera em 22 anos. Foi chamado por Geraldo, seu chefe direto. “Você é um funcionário antigo e chega atrasado deste jeito? Como eu fico diante dos outros funcionários? Você precisa dar exemplo! Se não dá, eu vou dar!” Mascarenhas foi suspenso por três dias do emprego, sob a alegação de falta grave e com o aviso que, da próxima vez, era “rua direto”. O grito da voz rouca do chefe fumante ecoava por seus tímpanos.

A força de um ciclope tomou conta daquele homem. Resolveu que o Mascarenhas que todos conheciam ia ser um novo homem a partir dali. Fingiu que ia embora da empresa, mas antes passou no departamento financeiro. Como Gerente Administrativo, ordenou os pagamentos de diversas duplicatas pré-datadas. Insatisfeito, ainda mandou fazer um depósito milionário na conta de um amigo, com quem depois combinaria de rachar o dinheiro. Apagou os vestígios desta última operação (22 anos de empresa deveriam servir para alguma coisa), mas haveria um rombo e alguém teria de se explicar. Pela hierarquia, seria Almeida, aquele que o convidou para “entrar no esquema”. “Agora este filho da puta vai sambar”, comemorou.

Mas isso ainda era pouco. Passou pelo centro de São Paulo e levou uma das prostitutas mais rampeiras que encontrou para casa. Deu o champanhe francês que ganhara do sogro (aquele “vesgo desgraçado”!) para ela tomar antes de levá-la para a cama. Mas sexo não era a principal intenção de Mascarenhas. Fez tantas preliminares esperando a chegada de Luciana que a moça chegou ao céu três vezes e até bateu a cabeça na cama, já prometendo não cobrar nada enquanto Masca brincava de Gene Simmons. Porém, para o gerente, o preço era o de menos. Ele queria era ver a cara de Luciana. Esperou o tilintar das chaves na fechadura e começou a pincelar a entrada da vagina de Dorothy (pelo menos era o nome dela naquele dia) com volúpia e destreza. A cabeça tocava cada milímetro daqueles grandes lábios quando Luciana abriu a porta do quarto. Depois de conseguir o que queria, Mascarenhas pagou a moça da ‘lida’, agradeceu e a dispensou, sem sequer ter descarregado a arma.

Luciana, em estado de choque, sentou-se no chão, de frente para a sacada, muda, descabelada, pálida. Masca, sem a menor piedade pela esposa (era como se referia à mulher na rodas de amigos), fez as malas e saiu sem trancar a porta. No caminho da garagem, encontrou um dos filhos, Alberto, o mais novo, de 17 anos, e emendou: “Você pensa que não sei que você é viado? Acho que não percebi o Carlinhos vindo estudar aqui todo dia? Está na sua cara, saia do armário, seu covarde!!!”

O filho, atônito, sem entender nada, entrou no apartamento com os olhos marejados quando escutou o pai cantando os pneus na saída da garagem. Foi a última vez que viram Mascarenhas.