lunes, abril 28, 2008

Em algum Texas do mundo - Final

Com a voz trêmula, Helena tentou se apresentar. Disse que acabara de descobrir que era adotada e que soube, no orfanato que a “dera”, que Lúcio foi a pessoa que a deixou lá. A conversa ocorreu ainda na porta, com Jalzira desconfiada. Helena perguntou se Jalzira conhecia Lúcio. “Conheço sim, moça. Ele era meu marido, mas morreu. Entra, vou passar um café.”

Helena já percebera, pela cara e pelo tom do papo, que não era filha daquela mulher. Jalzira explicou que Lúcio a deu para adoção porque ela estava sem família no mundo. “Por quê?”

“Um amigo do Lúcio roubou você de uma maternidade e queria te criar. Mas o Lúcio não achou certo. O amigo bebia demais, a mulher dele não queria a adoção. Te deixaram um mês sem comer direito, nem trocavam tua roupa, nem banho te davam.”

“Mas por que este homem me roubou então?” “A filha dela foi seqüestrada ainda pequena. Ele ficou maluco. Depois de seis, sete meses sem dormir, só bebendo, resolveu que tinha de ter a filha de volta. Um dia, completamente bêbado, entrou de madrugada numa maternidade próxima daqui e roubou uma menina. Esta menina só pode ser você, pelo que você está me falando.”

Helena tremia enquanto tentava dar o primeiro gole de café. “A senhora sabe onde mora este homem? Preciso saber por que ele fez isso! Ele me tirou da minha família! E o seo Lúcio, com todo o respeito, quis ajudar, mas não conseguiu. Fui parar numa família péssima, que nunca me deu amor!”

“Ah, filha. Deixa isso pra lá. Você é uma mulher agora. Bonita, parece saudável, inteligente...” “Não, não, senhora... eu sou é muito infeliz por causa deste amigo do seu marido.”

Depois de mais de uma hora de conversa, Jalzira desistiu e pensou que a menina tinha direito de conhecer o cara que mudou o destino dela. Deu o endereço de Jair, que não era muito longe dali.

Já passava das dez da noite quando Helena chegou, caminhando, à porta da casa de Jair. Bateu e ninguém atendeu. Chamou, bateu palma e nada. Sentou à porta e começou a chorar. Algum tempo depois, chega um carro. Eram os vizinhos. “Tá procurando o Jair, moça?” “Estou sim.” “Ele está no bar do Maneco, vai pra lá todos os dias.” “É longe daqui?” “Um pouco... eu até daria uma carona, sabe, moça, mas preciso levantar cedo pra ir à missa, sabe como é. Além disso, a patroa não vai gostar de eu andar com uma moça tão bonita no carro”, disse o homem, cujo nome Helena nem perguntara, sob o olhar severo da esposa.

“Por que a moça não espera mais um pouco?” “Não posso mais esperar. Eu vou andando. Chego lá em quanto tempo?” “Ah, moça, nunca fui pra lá andando, mas deve demorar um pouco mais de uma hora.”

“Eu vou. Só um pedido: tem alguma bebida? Está esfriando e perdi minha mochila com as minhas roupas. Queria esquentar.”

Ganhou uma garrafa de uísque vagabundo e, com o endereço do boteco, que ficava praticamente no meio da estrada, partiu. Virava goles daquela bebida fétida no gargalo. Não sabia se o frio tinha passado ou se a bebedeira tirara sua percepção de calor. Depois de uma hora e quarenta minutos andando, cansada, viu uma taberna. Não tinha nome, mas pela descrição, era aquela. A garrafa já tinha acabado. Cambaleando, foi atravessar a estrada. A última coisa que escutou pareceu ter sido uma buzina.

viernes, abril 18, 2008

Em algum Texas do mundo - Parte 2

Sozinho no mundo desde que a mulher morreu, Jair havia recebido alguns meses antes a notícia do médico: estava com câncer no pulmão, já havia entrado em metástase e teria mais sete ou oito meses de vida, no máximo. O médico até disse que poderia tentar cirurgia ou tratamento. Mas as chances de cura eram de 0,5%, no máximo. Como ele fez o cálculo Jair nunca perguntou.

Desenganado, aquele velho homem do interior já não tinha motivos para lutar pela vida. Sozinho no mundo, aposentado, com poucos amigos, transformara-se num zumbi desde que sua filha fora seqüestrada aos dois anos de idade.

Ele e a mulher viveram 19 anos atrás dela. Até que um infarto levou embora Eulália e ele ficou sozinho na busca. Busca que já não acontecia de maneira concreta. Havia se transformado na esperança de que ela um dia pudesse aparecer. Eulália repetia: “Ela nem deve lembrar nossos nomes. Não sabem quem é. Fizeram a cabeça dela, ela pode não saber que foi seqüestrada, era muito pequena...”

Do outro lado, Helena cresceu em uma família de descendentes europeus. Estudara em uma escola de burgueses em uma cidade grande, mas sempre achou os pais frios demais. Sentia falta de carinho. Ainda no primário percebeu que havia algo errado. Os pais, loiros de olhos azuis, não tinham nada a ver com ela fisicamente. As amigas do colégio perguntavam. Os meninos tiravam sarro.

Perguntou então para Helga e Otto, que desconversaram. Disseram que os amigos só queriam importuná-la. Mas ela cresceu com a dúvida. Quando chegou aos 18, fase em que já fumava e bebia até cair em festas, estava no auge da rebeldia adolescente, descobriu uma pasta guardada a sete chaves num fundo falso do guarda-roupas do quarto dos pais. Lá dentro estava o documento que comprovava: ela fora adotada de uma instituição quando tinha quase 3 anos.

Revoltada, esperou os pais chegarem da viagem, colocou-os na parede. Negaram até o final, como quem é flagrado nu com alguém na cama e jura que não estava fazendo sexo. Mesmo assim, ela esfregou o papel na cara dos dois. Pegou a mala, já arrumada, e caiu no mundo.

Enfiou-se na casa de uma amiga por uns tempos: bebia ainda mais, consumia drogas e abria as pernas para qualquer um. Um belo dia, após fumar uma bucha com o Marcão, amadureceu a idéia de ir atrás de seus verdadeiros pais. Guardara o nome da instituição em que seus ‘pais’ a adotaram. Foi para lá, fez perguntas, levantou os registros. O arquivo dizia que o homem que havia deixado a criança para adoção chamava-se Lúcio Javanelli, um homem que morava em outro estado, numa cidadezinha.

Partiu atrás, crente de que Javanelli era seu pai. Emocionada, não sabia se o xingaria pelo abandono ou se buscaria abrigo em seus braços. “Pode ser que ele não tivesse condições financeiras para sustentar uma criança, não posso julgá-lo”, ponderou, enquanto viajava de ônibus para o interior.

Desceu na praça principal da cidade, convicta de que não seria difícil encontrá-lo. Perguntou para algumas pessoas, que não entendiam porque alguém o procurava tanto tempo depois. “Moça, o Lúcio morreu faz tempo.” A notícia a atingiu como um choque. Como assim, depois de tanto tempo procurando, não ia conhecer seu verdadeiro pai? “Mas se a moça quiser, eu mostro onde mora a viúva, a dona Jandira.”

Tremendo e com passos frouxos, Helena seguiu o homem por alguns metros: “Tá vendo aquela viela ali? Vira à direita nela e no final à esquerda. É a única casa amarela que vai ver.”

Lá foi Helena sem saber direito o que ia falar para a mulher. “Seria minha mãe?” Realmente era a única casa amarela que viu. Parecia ter sido pintada com gema de ovo... Bateu na porta e escutou passos arrastados virem até a porta. “Boa tarde, moça. Posso ajudar?”

Continua...

viernes, abril 11, 2008

Em algum Texas do mundo

Jair tomou o último gole do uísque que pedira no balcão. Já estava um tanto aguado, é aquele gole que tem mais gelo derretido que a bebida. As cadeiras já estavam quase todas viradas, quando ele agradeceu Maneco, que já havia até fechado o caixa, e saiu, meio zonzo, fazendo barulho no chão de madeira com o salto das botas.

Caminhava em direção ao carro, quando escutou uma buzina de caminhão e percebeu um flash de luz. Era o motorista dando farol alto. O cérebro dele demorou para processar a informação. Ouviu um grito e um som pastoso, não sabia o que era. Pensou que o Chivas (marca escolhida em homenagem a um leitor) fosse o responsável. Afinal, foram seis doses. Mas não. Algo estava na estrada, bem no meio da estrada.

Andou para ver o que era, mas o trajeto era difícil...cambaleava e não conseguia enxergar, a escuridão o cegava. “Vou colocar gelo no saco assim que chegar em casa, está rodando tudo”, pensava, enquanto olhava para ver se vinha algum carro. O silêncio só era quebrado pelas poucas corujas existentes.

Chegou, finalmente, ao corpo. Sim, era um corpo. Ele não se espantou com isso, mas com o fato de ser uma mulher belíssima. De saia jeans e top vermelho, com botas longas. Cabelos negros, com pitadas castanhas e uma boca quase tão sensual quanto a da Angelina Jolie. “Meu Deus, como pode ter feito uma coisa destas? Tão linda...”, lamentava-se, pensando no motorista do caminhão, e agachando para ver aquele rosto de perto. Ajeitou o cabelo cheio de sangue. Com expressão de velório, levantou-se, pois a poça no chão já estava sujando seus sapatos. Coçou a cabeça, olhou para os lados e pensou em chamar Maneco para ajudar. Chegou a dar alguns passos tortos em direção ao bar. Não fossem quatro horas da manhã naquele vilarejo e Jair teria tido o mesmo destino da bela mulher.

Claudicante, balbuciou palavras incompreensíveis para si mesmo, voltou ao meio da estrada, pegou a jovem garota e a colocou nos ombros, repetindo: “Foda-se a minha camisa”. “Foda-se a minha camisa.”

Colocou a morena, a quem decidiu chamar de Tracy (tirou o nome de um filme americano que assistira há pouco tempo) no banco de trás do carro. Mesmo ela estando morta, acreditava que colocar alguém no porta-malas seria o cúmulo da crueldade.

Dirigiu devagar até sua casa, olhando seguidamente pelo retrovisor, como se quisesse ver que Tracy estava bem. O sol já dava sinais quando Jair chegou à velha construção, de paredes brancas e sujas, tirada de um filme texano.

Com a delicadeza de um equilibrista, levou a garota até seu quarto, despiu-a, limpou o sangue (que, obviamente, não estancava) e foi tomar banho. Na volta, deu de cara com nova poça de sangue. Após limpar, abriu a geladeira e pegou uma cerveja. Deu três goles, terminou o cigarro no filtro e dirigiu-se à Tracy, antes que outra poça se formasse: “Fique tranquila, não vou te machucar.” Beijou seu corpo inteiro... comemorou o fato de ela não ter unhas vermelhas e a pele ser clara. Depois de alguns minutos, penetrou o cadáver com força, falando sozinho, celebrando seu feito. Chegou ao orgasmo pouco tempo depois. Como dizia seu amigo Gerson, depois de velhos, os homens voltam a ser os galos que foram na adolescência.

Foi até o armário e pegou seu rifle, uma espingarda safada, que usava para caçar, mas que caíra em desuso há anos. Perdeu algum tempo limpando-a, inclusive por dentro, para não ter problemas.

Deitou-se ao lado de Tracy e deu mais um beijo naquela boca de Jolie. Apontou o rifle contra o peito e disparou, agradecendo ao gênio da lâmpada a concessão de seu último desejo.