sábado, agosto 19, 2006

História de um machão - Parte 2

Acendeu um cigarro. A esta altura do campeonato, o risco de uma doença pulmonar já era até um desejo. Quem sabe poderia encher o pulmão de fumaça e se livrar daquilo? Enfim... a vida não seria tão boa com ele. Aquele que não existe provaria sua existência agora?

Para Sebastião, estava tudo acabado. Não tinha mais vontade. Para nada. Acabaram-se as perspectivas. Sua última alegria teria sido a vingança.

Antonieta era uma daquelas mulheres prendadas que vivem de bom humor. Com ela, não tinha tempo ruim. Sempre rindo. Estivesse carregando um cesto de roupa suja ou as compras. A alegria e a simpatia da mulher incomodavam profundamente Sebastião.

“Mulher dada demais não presta”, repetia sempre a si mesmo, com sangue nos olhos. Mas amava aquela mulher. E assim viviam. Quase sempre às turras, já que Tião estava sempre repreendendo Tieta.

Já estavam no 11º ano do casamento sem filhos (Antonieta tinha uma má formação no útero que impediu a gravidez), quando Sebastião viu Antonieta dando risada pro delegado na padaria. Ficou enfurecido, mas preferiu o silêncio.

A cena se repetiu nos dias seguintes. Ele sempre via Tieta de papo com o doutor delegado. Quando se aproximava, os dois mudavam de assunto.

Até que um dia, Antonieta saiu de casa logo depois da janta, dizendo que ia levar uns bolinhos para a comadre, que morava três quadras acima. Tião arregalou os olhos. Era raro ela sair à noite, ainda mais sozinha. Botou a cara na janela, por trás da cortina, para espiar a mulher. Ele estava indo no sentindo contrário à casa de Creusa. “Maldita. Miserável. No mínimo, vai atrás do delegado.”

Sebastião pegou a maior faca que tinha. Embora um pouco enferrujada, era um baita facão. E foi atrás de Tieta. De longe, viu-a entrar na casa do delegado. “Como ela pôde fazer isso comigo? Vou acabar com a raça dessa capivara!”

Ficou à espreita, embaixo da janela do delegado. Não conseguia escutar o que falavam, mas ouvia algumas risadas. Com certeza aquele papo era descontraído. Não teve dúvida. Entrou pela porta dos fundos, que o delegado sempre deixava aberta para o cachorro entrar e sair à vontade. “Ninguém entra nesta casa, ninguém se mete a besta comigo”, falava o doutor, para quem quisesse ouvir.

Sebastião entrou “voando”, passou pela porta da cozinha e viu os dois conversando na sala. Antes que pudessem dizer algo, cravou a faca na barriga de Tieta, girando, conforme tinha visto em um filme. “Meretriz! Meretriz!”, berrava, enquanto destruía todos os órgãos de sua amada. O delegado tentava puxá-lo, mas a raiva de Tião o transformara no homem mais forte do mundo. Antonieta caiu em uma piscina de sangue. O delegado sacou a arma e fez Tião soltar a faca. “Delegado, fio duma... tu tava se engraçando com essa aí, é?”

O policial estava segurando a arma, mas abestalhado. Pálido, não conseguia entender. Nem pensar direito. Depois de uns dois minutos de silêncio diante do corpo da mulher, abriu a boca. “O que você fez, homem? Está louco?” “Eu devia era ter matado vocês dois”, respondeu Tião. Seus olhos refletiam o sangue no chão. “Mas matar por quê? Você acha que eu e ela...” “Não adiantar negar não, delegado. Eu não acho, eu tenho certeza.”

“Pois você é um patife. Um animal. Tua mulher veio aqui para buscar um presente que encomendou para dar a você em seu aniversário, seu cabra. Não faz 42 anos no sábado?”
Agora era Tião que ficara pálido. O delegado veio com os sapatos que tinha comprado a pedido de Antonieta. “Ela sabia que você queria um sapato de couro chique, tipo daqueles de gente fina, que não têm aqui. Como sabia que ia pra cidade grande me encontrar com o juiz e o promotor, pediu para eu trazer. Ficou juntando as economias por oito meses pra dar isso a você. Hoje ela veio buscar, ia te fazer uma surpresa. ”

Sebastião, com o sapato na mão, não sabia o que fazer. Transtornado, começou a chorar agarrado ao corpo da amada, que se esvaía em sangue. “Seu cabra, você vai preso. Você é louco e devia ser levado prum hospital de louco.”

Tião ficou catatônico por um mês. Levaram-no do pequeno xilindró da cidade pro tal de manicômio judiciário. Ficou lá 15 anos, mas um dia o soltaram dizendo que já estava curado. Na verdade era porque não cabia mais ninguém e precisavam pôr mais loucos, os loucos mais novos, no lugar.

Agora estava ele. 57 anos. Solto no mundo, sem ter para onde ir e corroído por dentro. Parecia ter 94 anos. Era a imagem do fracasso, da tristeza. A respiração falhava o tempo todo. Só fez fumar em todos estes anos. Arrumou uma espingarda emprestada com um amigo. Disse que estava de volta e ia caçar. Mas nem voltou pra casa. Foi pro meio do mato. O disparo ecoou no espaço e assustou uma gazela que estava dormindo.

miércoles, agosto 09, 2006

História de um machão – Parte 1

“Amanhã vou ver o jogo no boteco com meus amigos”, disse Navarro. “Sabe que gosto de futebol.” “Não precisa se explicar não”, retrucou Mercedes. Pronto. Aquela frase foi um golpe em Navarro. Um soco teria sido melhor. Sentiu-se humilhado.

“Quem ela pensa que é?”, pensou. Arrependeu-se profundamente da última frase. Foi retórica, mas soou como a frase de um pau mandado medroso. “Como fui burro”, esbravejou, agora em voz alta. Mercedes já não estava por perto.

Remoeu-se. “Ela precisa saber que não sou homem de me explicar para ninguém. Ela precisa saber. Logo eu? Eu, que fui cachorro de rua por tanto tempo... Sim, em mim ninguém põe coleira.” Isso era antes, na verdade. Porque desde que Mercedes entrou na vida de Navarro, ele mudou um pouco. Já não bebia tanto, já não via tantos os amigos. O futebolzinho e pôquer deram lugar a momentos com sua amada. Bonita, charmosa e inteligente. Assim era a mulher que tinha mudado sua vida. Arquiteta, Mercedes trabalhava como paisagista/decoradora. Era muito ligada à parte estética e estava sempre exuberante.

“O que eu vou fazer? O que eu vou fazer? Essa mulher me humilhou. Senti-me ultrajado na minha condição de macho.”

De repente, uma luz. A Janice. “Sim, a Janice, como não pensei nisso antes?” Janice era uma mulher do trabalho que vivia dando brecha pro Navarro. Ele se fazia de besta. Afinal de contas, havia nascido com um grave defeito: faltava nele o gene da putaria. Não conseguia trair. Chifrou duas namoradinhas da adolescência e se sentia mal por isso. O remorso o corroeu nas duas ocasiões. Com Mercedes então... estava limpo. Nunca tinha chifrado a moça.

Mas agora era diferente. Precisava dar uma lição nela. E Janice era uma boa lição. Tinha uma bunda bonita e um rostinho meia boca. Mas servia para a ocasião. “Ela vai ver só.”

Cancelou o boteco com os amigos, inventando uma desculpa qualquer; “Bicha!”, ouviu. Normal.

Radical, resolveu que tinha de dar a lição direito. No apartamento de Mercedes. “Nunca mais vai dizer que eu estava me explicando”, disse, ainda espumando e pensando em uma cena estilo Rubem Fonseca.

Fez de tudo para chegar antes na casa de sua namorada. Tinha as chaves, pois dormia lá umas três vezes por semana. Convidar Janice para uma esticada pós-trabalho não foi uma tarefa difícil.

Levou a colega de escritório para o apartamento da mulher. O porteiro estranhou, mas cumprimentou-o. “Boa noite, seu Navarro.” Eram 18h30. Mercedes chegaria por volta das 19h.

Abriu duas cervejas e pegou uns amendoins. Não queria ser romântico. “Não vou dar vinho para essa mulher. É muito caro e ela vai dar pra mim mesmo que eu ofereça tubaína”, raciocinou. Começaram a falar sobre amenidades, meter o pau no chefe. Uma extensão do papo de almoço, falar mal das pessoas da empresa.

Seu coração acelerava à medida que o tempo passava. O relógio na parede parecia o regulador de temperatura de uma sauna. Gotas de suor escorriam da sua testa. Não demorou muito para Navarro ganhar “duas pizzas” embaixo dos braços...De repente, o barulho do elevador... “Ela chegou”, pensou, dando-se conta que a esta hora já deveria estar, no mínimo, dando uns amassos na Janice. O tilintar das chaves causou-lhe um mal súbito. Mercedes abriu a porta. Antes que pudesse falar qualquer coisa, Navarro despencou, duro.

“Amor?” A namorada correu para acudi-lo. Janice, sem entender nada, se apresentou. Como já sabia que era apenas uma candidata a amante, inventou uma desculpa e foi procurar ajuda. Quando voltou com o porteiro, Navarro acabara de acordar nos braços de sua amada: “Ainda bem que você estava aqui para me salvar. Acho que passei mal com o calor. Esta é a Janice, minha colega de trabalho. Ela veio aqui para te pedir umas dicas de decoração, pois está se mudando”, disse, fazendo um sinal para a colega de trabalho.

Janice disse que as dicas poderiam ficar para outra hora, pois Navarro havia acabado de passar mal. “Muito prazer. Até logo.” “O prazer é meu. Desculpe pelo meu namorado. Marcamos para outra hora e te dou as dicas que quiser”, disse Mercedes, fechando a porta. Quando virou-se, viu Navarro deitado no sofá, com cara de cachorro sem dono.

miércoles, agosto 02, 2006

Quaaludes

Ninguém quer morrer. Nem os suicidas. Os suicidas se matam porque não querem mais viver, mas não porque querem morrer.

Todos cometem absurdos, mas recuam diante da morte. Os poucos que não recuam é porque estão em um estado de perturbação mental (que pode ser causado por diversos problemas sérios, como doenças, dívidas, etc) que os faz querer o fim da vida.
Não saber o que há do outro lado e, se há outro lado, é, provavelmente, o mais importante fator para alguém não querer morrer.

Mesmo os que encaram uma arma carregada não querem morrer. Eles podem querer bancar os corajosos para vender a imagem para alguém, ou simplesmente agirem por impulso, sem pensar direito. Mas querer morrer, não querem.

Faz sentido, então, vir ao mundo para tudo acabar um dia? Não sei. Perdemos parte da nossa vida quando alguém vai embora. Perdemos épocas, sentimos falta. Perdemos bens materiais e às vezes damos muito valor a isso. Depois vemos que é errado, mas não conseguimos deixar de nos importar com alguns objetos. Mas e se perde você? Não dá mais para reconstruir. Acabou. Virar uma lembrança para alguém vale a pena? É o que faz valer a pena estar aqui?

E como sabemos que o clichê de esquina de que todos vamos morrer um dia é a maior verdade do mundo, ser responsável pelo nascimento de alguém é, também, ser responsável por uma morte.

Sim, porque se um filho nasce, um dia este filho morre. E alguém vai sofrer por isso. E ele vai pensar a vida toda que um dia vai morrer. Podemos ser responsáveis pelo sofrimento de alguém e pela morte desse alguém. Se não lhe dou a vida, não lhe dou a morte. “Mas, se tiver descendentes, deixo um legado, faço algum sentido.” Faço mesmo?

Realizar algo realmente importante, que possa ser visto depois, é uma maneira de minimizar nossa ida? O que é algo importante?

Seria mais confortante ou responsável não trazer ninguém ao mundo?

Cada dia a mais é um dia a menos.