jueves, julio 27, 2006

História de um moleque (Final)

Anchieta. Frio no estômago. Ansiedade pura. A cada quilômetro aumenta o nó. “Km 14, acho que é aqui. Cacete, quanto carro!” O caminho é curto, mas o trânsito impede chegar rápido. “Onde eu vou parar, onde eu vou parar? Aqui. Não, aqui é proibido. Estacionamento. Pode ser uma boa. Terei de vir todos os dias. Mas e se for caro? Quanto é o mensal, amigo?” “RS 35”. “Beleza.” Encosta o carro.

“Paga na volta.” Legal. Primeiro problema resolvido. E é barato! Gente vai, gente vem. Sorrisos, abraços. Um pouco de raiva de tanta felicidade. “Será que um dia vou ficar feliz de vir pra cá?” A ansiedade é tanta que um cigarro duraria 30 segundos. Mas eu não fumo. Então ando. E rápido. Mas parece que não chego nunca... Hot dog. Cerveja. Sorrisos, cigarro, cerveja, hot dog. Marra, surfistinhas. Carro aberto, som alto.

Entrei. Essa ladeira é gigante. O que eles querem? Que eu estude ou que eu emagreça? Ninguém é barrado. Não sei se é bom ou ruim. Passo vai, passo vem e este monte de árvores engana bem. Clima de campus. Será que vou ficar aqui sentado no bosque alguma vez?

Cheguei. Faltam só mais alguns degraus. Agora meu estômago parece a “massinha” de modelar do Pré II. Última escada. Olho pra cima. Opa. Duas caras conhecidas. No meio da multidão desconhecida, rostos vistos uma vez tornam-se pessoas amigas. Um eu falava no cursinho. O outro é aquele meio estranho, que ficava quieto no canto da sala lendo revista de guitarra. Nem lembro o nome dele.“Opa, e aí?” “Opa.” “Beleza?” “Beleza.” “Conhece?” “Conheço”. Amenidades. Entramos na sala. A sensação de solidão dá um tempo.

Lembro de quando tirava 10 em matemática. Faz muito tempo. As primeiras notas vermelhas. Os gols no campeonato do colégio. Saudade. O fora no baile da 6ª série. As baladas no colegial e a descoberta de novos mundos. Será que aqui vou descobrir algo novo? Quis tanto chegar aqui e não me parece nada demais. O professor não chega. Os veteranos tentam entrar na sala, mas não assustam nem uma barata.

O professor finalmente aparece com aqueles óculos de intelectual e sua voz denuncia: é o cara que gravou aquela propaganda de comida pronta: “Sou eu, seu estômago.”

Um dia, dois dias. Nada de conteúdo. Uma gripe, umas faltas, a volta e o começo de verdade. Se é que começou de verdade um dia. O cara do cursinho pede uma carona. É caminho mesmo. Vambora... “Ow, eu tenho uma banda...Estamos procurando um baterista...”

sábado, julio 15, 2006

História de um moleque - Parte 2

Na volta do trabalho na segunda-feira, Beto Ayala passou de ônibus pelo antigo campo do Detran. E com a curva feita pelo Ana Rosa 677 A, mais lembranças de bons tempos que não voltam mais.

Para fechar com chave de ouro seu dia da nostalgia, Ayala não poderia ter voltado à época melhor do que aquela. Aliás, aquele campo de futebol está para sempre marcado nele. Uma cicatriz no joelho serve como prova de que aquelas “poças” de cimento no meio do campo após o termino da obra não eram condizentes com um bom jogo de bola. "Driblei pra esquerda justamente por ser destro e o Lila me derrubou", lembrou. A maior bronca é que o técnico (se é que podia ser chamado assim), que apitava o treino, não marcou pênalti. "Aquele cara era mesmo um bosta", murmurou. "Adorava que o treino terminasse empatado."

Mas embora jogar futebol tivesse sido a primeira verdadeira paixão do Beto, toda a magia que envolvia aquela época dos treinos da Poli era o que mais havia marcado sua mente.

O ônibus subiu mais um pouco e ele desceu naquele quarteirão, que deveria ter gigabites de memória. Eram muitas as histórias ali armazenadas. Ayala nem morou naquela rua, mas se sentia um pouco dono daquele espaço. Os amigos também.

Ainda lembrando dos bons tempos da Poli, Ayala refez a rotina das quartas e sextas: virava da Rua Áurea já de olho na sacada do Rógi. Ele estava quase sempre ali, era uma espécie de guardião da rua, embora mal enxergasse quem estava na calçada. Mas isso ninguém precisava saber. De repente vinha o Oguh e, por um tempo, o Harada. O Oguh estava com seu uniforme perene, aquele calção do Corinthians. Deve ter sido a peça de roupa mais bem aproveitada por alguém em toda a história da humanidade.

Quase sempre por último vinha o Quico, colocando a cara na sacada e pedindo para esperar. Afinal de contas, se não fizesse ninguém esperar, não era o Quico. E não aceitava reclamações. Tinha sempre um argumento para ser o último. Depois de um tempo, desistiram de discutir. Era só uma interjeição "xingatória" (sic) para ele não achar que já estava com permissão coletiva pra atrasar o treino de todo mundo. "Tománocu", alguém reclamava. Ayala ri. "Era um puta cara." E lá iam aqueles moleques, pretensos craques, a caminho do treino.

Na volta, o ciclo ficava completo. A Juanita descendo a rua com a coleira do Amici em uma mão e um picolé de uva na outra. A Japa cochichando no ouvido do Gordo, que ficava cada vez mais apaixonado. "Primeiro exemplo claro de rodriguiana que conheci", pensou Ayala, que emendou no seu próprio pensamento: "Mas era uma gata. Isso é inegável. Até o Severino, porteiro do prédio do Piu, deve ter tido sonhos eróticos com ela."

O Piu. Sangue bom. Mas não gostava de futebol. Vivia querendo convencer o pessoal a jogar basquete no prédio do Quico. "Todo mundo queria fazer gol e ele aparecia com aquela porra daquela bolinha baby de basquete?" Mas tudo bem. De vez em quando até valia a pena. Legal mesmo era tapar os ralos da quadra e jogar com a água quase no joelho nos dias de chuva. Depilação e caneladas gratuitas com a quantidade de carrinhos. A bola virava detalhe para aquele bando de inconseqüentes. Depois, muitas vezes, ainda rolavam uns comes e bebes na casa do Quico. Santa Dona Laura.

Depois, a "grande preocupação" é com o que ia ser feito à noite. Fora a fase em que tudo mundo quis se internar na casa da rodriguiana, o cardápio variava. Idas a pé ao shopping, casa de um, casa de outro. De bobeira na rua, conversa jogada fora, porres na rua, porres na casa do Piu, festa de graça bancada pelo Projeto...mas isso já foi na fase em que o Piu dirigia. Era mais velho e levava todo mundo. Cara a cara com o perigo. Prudência não fazia parte do vocabulário dele naquela época. Teve uma fase "no future" em que quase acabou com a própria vida e com as dos outros também. Aquela Elba era a versão pós-moderna do "Herbie – Se meu Fusca Falasse". Emoção pura.

Apesar de momentos que beiravam ao desespero da juventude perdida, aqueles moleques eram amigos. E amigos gostam de fazer nada juntos. Eles faziam tudo e faziam nada juntos. Encaravam o mundo, se fosse preciso. Ou achavam que encaravam. Às vezes Ayala ainda sobe aquela rua e acha que vai ouvir o Harada dando bicicleta sozinho na quadra, ver o Rógi chamando da sacada, se irritar com o Quico, com o telefone no ouvido, pedindo para esperar. Ver a Juanita fazer charme pro Rógi antes de abrir o portão, o Oguh não disfarçar quando a Japa passa, o Nunes chegar de guarda-chuva com a última novidade da música...O Piu descer pra passear com o cachorro e ficar olhando com cara de bobo pro prédio da Priscila...

E isso sem falar em listas de telefone queimadas na madrugada, tapa de gambé, porre na Socylek, baseado de orégano, mordidas em jaqueta de couro pra saber se é couro mesmo (bebida de graça...), paixões, brigas, as festas "Casseta e Planeta" no prédio do Rógi, shows na casa do Piu, arremessos de frutas na PHD...Opa. Cheguei na Rua Áurea. Cadê o Opala abandonado com o mendigo dentro?

miércoles, julio 05, 2006

História de um moleque – Parte 1

Segunda-feira é dia de Ayala pegar o Vila Gilda 677A. Rodízio. No trajeto ele passa pelo Parque Ibirapuera. Aquele gramado na frente do paredão está cheio de árvores. Irregular. Tem um alambrado e uma espécie de pista de aeromodelismo agora. Ele voltou uns 20 anos no tempo. Nada daquilo existia.

Aquele era seu espaço nas manhãs de domingo. Acordava cedo, comia uma pizza amanhecida e lá ia com o pai, que colocava um tênis surrado, e o irmão. Passava horas achando que um dia seria um craque. Lembra-se do dia em que a bola foi parar do outro lado do muro. Lá funcionava o almoxarifado de algum lugar que até agora ele não sabe o que é. Apesar da busca, a bola nunca voltou. Recorda-se da tristeza profunda que aquilo causou. Era uma bola igual à que Diego usou para encantar o mundo com seus dribles e gols no México.

Pois é. Aqui está. O mano do banco do lado está desmaiado abraçado na mochila. É como se fosse sua namorada. "Será que ele tem uma?", pensou. Do jeito que agarrava a mochila não deve ver mulher faz tempo. A gorda loira, de rosa e estilo perua, fala ao celular. Nada discreta. Dá risada. "É daquelas que veio ao mundo a passeio e pelo jeito está se divertindo mais do que a maioria."

Gente de bem, ou não... com sono. Emburrada. Também pudera. É segunda-feira. O sorriso estampado na face da gorda loira o agride. Imagine se fosse o ônibus inteiro com aquela felicidade esta hora? Seria uma surra em Ayala. Melhor assim.

Mas ele volta para suas divagações. "Quem deu ordens pra acabar com o meu gramado?", pensa. "Aquelas árvores já atrapalhavam e ainda colocaram outras?" Lembra-se quando chutou a bola em um tronco certa vez. As abelhas daquela colméia não deviam gostar de futebol. A orelha de Ayala que o diga. O irmão saiu correndo, se debatendo. O estrago só não foi pior porque ele (o irmão) estava com camisa de goleiro.

Não sabe dizer ao certo o que se passava em sua cabeça naquela época. Sabe como esperava as manhãs de domingo e nunca queria ir embora. Ficava revoltado quando eles (pai e irmão) ficavam cansados. "Como podiam?" Era possível passar o dia inteiro ali. Acha que chutar uma bola foi o primeiro grande prazer que teve na vida. E se chovesse? Queria bater no filho da puta que inventou aquilo. Achava que tinha a vida inteira pela frente. Parecia ter. Toda sua urgência era jogar bola. Era a única coisa que não podia deixar para depois. Era quase a razão dele viver.

Agora mal consegue jogar a cada seis meses. O pouco que aprendeu, desaprendeu. Já sabe que não tem mais a vida inteira pela frente. Agora sabe que os pais não são heróis. E que não são imortais. Agora tem certeza absoluta de que nunca será jogador de futebol. Agora sabe como a vida pode passar rápido. Agora sabe que uma bola perdida em um almoxarifado é ruim, mas não é o fim do mundo. Agora sabe que uma das melhores sensações da infância é achar que tem a vida inteira pela frente. Agora sabe que a Terra gira mesmo e não era apenas blábláblá da professora (linda) de Ciências.